quinta-feira, outubro 30, 2008

Os melhores quadrinhos de todos os tempos

O primeiro contato que tive com “AS AVENTURAS DE CORTO MALTESE” foi na revista GIBI, ainda nos anos 70. Eu já tinha ouvido muitos elogios à série feitos por meu tio Nilson e visto numa revista francesa alguns desenhos e entrevistas, mas “O Segredo de Tristam Bantam”, com suas pirâmides e deuses pré-colombianos, a civilização perdida de Mú, Morgana Bantam, Boca Dourada, magia e é claro Corto Maltese foram além de toda expectativa.

Na lista de melhores autores de hqs de todos os tempos, sem sombra de dúvida seu criador, o italiano Hugo Pratt ocupa um lugar especial. Nascido em Rímini, cidade de outro gênio, Federico Fellini, em maio de 1927, esse auto-declarado veneziano é sem dúvida um dos maiores narradores dos quadrinhos e “As Aventuras de Corto Maltese” sua maior obra.

Para o jovem leitor, acostumado com as pirotecnias do “cinema” atual, todo forma e nada conteúdo, e com a influência deste nas hqs pretensamente cinematográficas, que tentam cada vez mais parecer “realistas,” a narrativa e a composição da página das histórias do marinheiro nascido em malta podem parecer ultrapassadas.

Engana-se, no entanto, quem se deixa levar por esta impressão numa rápida primeira folheada no livro "A Balada do Mar Salgado", estréia do personagem, datada de 1967, com suas 160 páginas em preto e branco e os desenhos soltos e estilizados de Pratt. Para se apreciar estas histórias é preciso mergulhar nelas, seu ritmo lento e suas ações aparentemente sem motivo, que se assemelham a um romance, onde as citações e influências se sucedem sem que a fluência da história seja interrompida.

Quanto mais eu leio histórias de outros autores da literatura, vejo filmes de Hollywood dos anos 50 ou ainda, leio sobre história, mitologia, política e filosofia, mais as histórias de Corto se enriquecem, revelando sucessivas camadas de sentido. Assim, é como se uma história de Pratt que eu li há mais de 20 anos continuasse se desenvolvendo, dialogando com outras obras da cultura mundial e comigo.

As obras de Robert Louis Stevenson, Herman Melville, Ernest Hemingway, William Falkner, John Steinbeck, Jack London, os poemas de Rimbaud, Verlaine, Walt Withman, Yeats, e os filmes de John Ford, David Lean, Glauber Rocha e John Houston misturam-se a personagens históricos como Corisco, O Barão Vermelho, Butch Cassidy, o próprio Jack London e outros fantásticos com o mago Merlin, Oberon das fadas, a fada Morgana, Caim, Samael o anjo caído, e aos complexos personagens do italiano: Rasputin, o Monge, Pandora, Tarao, Venexiana Stevenson, Tiro Certeiro, Esmeralda, Cush, Steiner, Banshee e tantos outros espalhados pelos quatro cantos do mundo.

A pesquisa histórica aprofundada é outra característica marcante, já que Pratt afirma ter vivido em todos os lugares por onde Corto passa: Irlanda, África, China, Rússia, as ilhas do pacífico sul, Veneza, Argentina e até o Brasil, onde ele tem uma filha.

Outro aspecto importantíssimo é o comportamento inusitado dos personagens, a originalidade e as reviravoltas da narrativa, onde o clichê nunca aparece a não ser como ironia ou deboche. Corto por exemplo, apesar de ter feito uma nova linha da sorte em sua mão com a navalha do pai, é freqüentemente manipulado por forças maiores que ele. Invariavelmente busca um tesouro que nunca encontra, apaixona-se por uma mulher que o abandona e termina como começou, sem nada nas mãos ou nos bolsos. Todos estes elementos, mais o engajamento político e o anti-colonialismo, além do respeito e admiração pelos excluídos, as populações negras e asiáticas, indígenas e mulheres, fazem de “Aventuras de Corto Maltese” minha hq preferida e de Hugo Pratt uma de minhas maiores influências, seja como roteirista ou desenhista.

E eu não sou o único. Hector Babenco afirma que “Pratt foi meu atlas, graças a ele eu conheci de Veneza até a África, passando pelas ilhas da Polinésia... mais do que um herói de aventuras ele serviu como um grande pensador da integração que o mundo nuca conseguiu construir...” e já quis até mesmo filmá-lo (o próprio Hugo Pratt pretendia dirigir um filme sobre Corto, que seria estrelado por Alain Delon, de todo modo, existem dois desenhos animados, um sobre a visita de Corto ao Brasil, outro na Sibéria), os quadrinistas italianos Milo Manara e Giardino colocaram criador e criatura como personagem em suas histórias, Frank Miller e Tim Burton fizeram homenagens a ele citando Corto no “Cavaleiro das Trevas”, no estilo dos desenhos de “Sin City” e no “Batman” do cinema. Além disto, personagens como Jack Sparow de “Piratas do Caribe” e o Spike Spiegel de “Cowboy Beebop” possuem um eco da ironia do personagem. Humberto Eco escreveu que "Pratt quer que o leitor se encontre sempre e já num território conhecido... está no jogo de maneira mais sutil. Não se poderia apreciar as cultíssimas histórias em quadrinhos de Pratt se não nos déssemos conta de que elas requerem um leitor capaz de identificar situações “tópicas” já surgidas em outros contos...agindo assim, faz a mais bela defesa das histórias em quadrinhos como gênero autônomo: porque demonstra que a história em quadrinhos não é parasitária de outras histórias que reconta sem saber, mas, sim, tem uma sutil capacidade de raciocinar sobre outras histórias...Pratt transforma e matéria de narração das suas aventuras a própria nostalgia da literatura, e a nossa."

É uma oportunidade única poder ler estas histórias, finalmente publicadas no Brasil pela Pixel, com uma qualidade nem sempre á altura, mas, de toda forma, imperdíveis. A Biblioteca da Casa possui "A Balada do Mar Salgado" para empréstimo.

Se você não gostar, francamente, saiba que o “defeito” é seu.
Até a próxima e boa leitura.





























Erick Azevedo (professor de Narrativa Visual)

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