Dissertação da História [UFMG] relaciona obra de Alan Moore ao contexto da Guerra Fria
por Gabriella Praça
Muitas vezes relegadas à categoria de mero entretenimento, as histórias em quadrinhos também abordam questões “sérias”, atuando como potenciais instrumentos de questionamento e mobilização política. Na primeira dissertação do Programa de Pós-graduação em História da UFMG dedicada exclusivamente à temática, o pesquisador Márcio dos Santos Rodrigues relacionou a obra do roteirista de quadrinhos inglês Alan Moore, produzida na década de 1980, ao contexto da Guerra Fria.
O objetivo foi evidenciar que grande parte das representações que aparecem em suas histórias são socialmente construídas a partir de elementos do mundo real condensados em narrativa orientada para fins políticos. Watchmen e V de vingança – duas séries do autor já adaptadas para o cinema – foram objetos de análise, para identificação de como elas se apropriaram de repertórios culturais de seu tempo, reproduzindo os dilemas e paradoxos da Guerra Fria.
O terror do fim do mundo vivenciado na época aparece no universo ficcional criado pelo “mago de Northampton”, como Moore é conhecido, por meio de artifícios como o posicionamento político de personagens, ideias divulgadas nas capas das edições ou inserções publicitárias ao longo das histórias. “O medo do perigo atômico era o tempo todo retratado na obra dele”, observa Rodrigues, que defendeu sua dissertação em setembro.
“Em determinado capítulo de Watchmen, havia a publicidade de uma bala chamada ‘Mmeltowns’. O nome é derivado da palavra que em inglês significa ‘fusão nuclear’”, revela. Mais do que inserir elementos da conturbada conjuntura geopolítica da época em seus mundos ficcionais, Moore convocava os leitores à reflexão. Em outra passagem de Watchmen, por exemplo, uma mulher é esfaqueada e violentada na porta de seu apartamento, enquanto os vizinhos assistem a tudo sem tomar qualquer providência. Já em V de vingança há uma transmissão televisiva em que o locutor denuncia: “Foram vocês que colocaram no poder uma sucessão de malversadores, larápios e lunáticos tomando um sem-número de decisões catastróficas”. Para Rodrigues, o autor chama atenção do leitor para o fato de que qualquer decisão política é legitimada pela população. “Ele aponta para o público, e é nesse sentido que seus quadrinhos desempenham a função de um objeto político”, analisa o recém-mestre.
Personagens plurais
Anarquista, Moore viveu em um mundo bipolar dividido entre Estados Unidos e União Soviética sem defender nenhuma das duas potências. Aliás, seu trabalho buscava justamente diluir o maniqueísmo da Guerra Fria, desconstruindo a lógica de um conflito que não se pretendia efetivo, mas baseava-se no medo. “Em V de vingança, ele propôs uma mudança por meio do anarquismo”, acrescenta Rodrigues. Com vários substratos narrativos, as histórias de Moore apresentavam personagens de viés conservador ao lado de outros mais liberais, em uma grande variedade de posicionamentos. Embora não se possa falar em uma orientação hegemônica presente em sua obra, a contestação aparece em praticamente todas as suas produções ao longo da década de 80. O engajamento provém da concepção de Moore acerca desse tipo de narrativa, pois, para ele, “todo quadrinho é político”.
Embora frequentemente associados à literatura, os quadrinhos constituem uma forma de expressão com códigos próprios. Para Rodrigues, equiparar quadrinhos a literatura foi uma tentativa de pesquisadores de dar um verniz de nobreza às obras por meio de um rótulo que não era delas, já que as expressões literárias são socialmente mais aceitas. Alcunhas como “comics” (“cômicos”, em português), que é como esse tipo de gênero narrativo é chamado nos Estados Unidos, ou “funnies” (“engraçadinhos”), na Inglaterra, contribuíram para orientar a percepção de grande parte do público acerca dos quadrinhos. Para muitos, é ainda um gênero destinado exclusivamente ao divertimento.
V de vingança foi uma das obras analisadas: viés anarquista |
Autor: Márcio dos Santos Rodrigues
Orientador: Rodrigo Patto Sá Motta
Fonte: Boletim UFMG
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